Santo Agostinho: Sermões – I
Volume I – Antigo Testamento [Sermões 1 – 50]
Traduzidos por José António Gonçalves
Introdução e notas de Isidro Pereira Lamelas
Tamanho: 150X210mm
Capa cartonada
N.º de páginas: 712
ISBN 978-989-9081-33-8
1.ª edição: setembro de 2022
Coleção: Fontes – 1
Excerto e Índice »
«Santo Agostinho pregou durante trinta e nove anos e, falando da sua experiência, confessava que nada o entristecia mais do que aquelas ocasiões em "que a minha língua não está à altura do meu coração". Isto é, quando sentia que as palavras com que comunicava, apesar de todo o brilho, ficavam ainda assim aquém da experiência contemplativa e espiritual que o consumiam interiormente como um fogo. O mesmo podemos transpor para avaliar a leitura que fazemos destes Sermões. É necessário que os nossos ouvidos e os nossos olhos estejam à altura do nosso coração, para que a voz que aqui nos fala (que é a voz de Agostinho, mas é sobretudo a voz da Escritura e a voz de Deus) nós a possamos conhecer, e não superficialmente, mas "em todas as suas tonalidades, e senti-la intimamente, fazê-la nossa"» (José Tolentino Card. de Mendonça, in Apresentação)
Nota à tradução
«Non verbum e verbo, sed sensum exprimere de sensu» São Jerónimo
«Não se trata de uma palavra por uma palavra, mas sim a expressão de uma ideia por uma ideia». Este é o princípio orientador de uma correta tradução, preconizado por São Jerónimo, considerado o pai e patrono dos tradutores. Na tradução dos Sermões de Santo Agostinho, quisemos evitar o servilismo de uma transcrição literal, que muitos consideram a forma mais segura de trair uma obra. Certamente, há expressões que traduzidas literalmente não têm nenhum sentido, sendo necessário muitas vezes empregar a expressão que convém mais exatamente à língua recetora, sem trair a ideia original. Por outro lado, também nos abstivemos de considerar como “canónicas” as traduções anteriores dos Sermões agostinianos, por mais prestigiosas que sejam, em várias línguas modernas (assinale-se, todavia, que os Sermões de Santo Agostinho ao Povo nunca antes foram editados na sua totalidade em língua portuguesa). Afinal cada tradutor e cada língua tem o seu ritmo próprio e o presente trabalho não podia deixar de confirmar isso mesmo. A principal preocupação que nos moveu, foi sentir o ritmo ofegante de Agostinho em busca da verdade, ou seja, de Deus; as emoções da sua alma mística; o seu zelo e entusiasmo pela salvação das almas; a sua formação retórica e o estilo que lhe é peculiar, conservando os recursos retóricos e estilísticos presentes na oratória agostiniana e transpondo-os, tanto quanto possível, para a língua portuguesa.
Se tivéssemos que justificar a multiformidade das traduções da obra agostiniana, a que se junta também esta presente tradução, poderíamos recorrer às palavras do próprio Bispo de Hipona. Ele, ao referir-se às várias traduções do texto da Sagrada Escritura, diz: «O que aqui sobretudo ajuda é o exame e a discussão de um grande número de tradutores, cujos textos se comparam. O essencial é excluir o erro. De facto, na análise dos textos, a sagacidade é que deve ser destacada» (De Doctrina christiana, 2, 25, 21). Ele associa o trabalho do linguista ao do teólogo, admitindo muitas traduções, tal como, para o caso da Escritura, ele admite muitas interpretações, desde que se conserve a pureza da fé. É preciso ver, afirma Agostinho, «como um tradutor deve combinar o conhecimento das línguas com as conjeturas daqueles que investigam as Escrituras por meio do raciocínio (…). Um único tradutor pode, de acordo com a mesma fé, expor tal passagem ora de uma maneira, ora de outra» (Epistola 82, 34), desde que não traia o pensamento do autor.
Sendo assim, ao lado da fidelidade, não apenas ao texto original, mas sobretudo ao pensamento e emoções do grande orador hiponense, evitando, todavia, o mais possível, modificações formais, gramaticais ou lexicais, visando não apenas a equivalência, mas a própria identidade, procurou-se o estilo homilético, o ritmo e a simplicidade das expressões peculiares de um discurso dirigido ao povo, na maioria das vezes, simples e com pouca formação.
O propósito de manter as asperezas próprias de um discurso muitas vezes provocador, os longos períodos com seus encadeamentos de orações subordinadas e coordenadas, a transposição, sempre que possível, dos jogos semânticos, a linguagem por vezes chocante, a busca dos termos populares, etc., faz parte deste desígnio de fidelidade ao autor e pode despertar também nos leitores o desejo da leitura do texto original.
O texto latino utilizado é o da edição crítica de Karl Heinz Chelius (Augustinus Werbe und kritische Editionen, Augustinus-Lexicon, 1986-1994), in CD-ROM (Corpus Augustinianum Gissense a Cornelius Mayer editum, Schwabe & Co. AG, Verlag, Basel, 1995).
José António Gonçalves
A aventura espiritual que é ler hoje Agostinho
Não sei que caminho fará este livro, como será recebido, que leitores encontrará, mas de uma coisa tenho a certeza: é um acontecimento extraordinário que ele exista, que a partir de agora fique acessível, que possa irradiar a sua intensidade espiritual aos de perto e aos de longe. Que constitua, mesmo se em contracorrente, nutrimento para os que não cessam de se interrogar e de buscar. E se pensarmos que este é o primeiro de quatro volumes, a alegria é como que multiplicada!
Recordo as palavras avisadas de Eduardo Lourenço[1] a lamentar que, no interior de um tempo como o nosso que vive «a indiferença como cultura», Santo Agostinho, esse «mestre da inquietude infinita da alma», corra o risco de parecer uma referência anacrónica, senão incompatível com a pulsão cultural hoje predominante. E Lourenço diz mais. Diz que Agostinho se tornou – depois de ter sido durante séculos o fermento mais ativo da cultura ocidental – um autor praticamente desconhecido, banido, uma espécie de «autor maldito». Por «maldito» entenda-se interdito, desativado, declarado fora de uso. E, contudo, redescobrir Santo Agostinho – insiste Eduardo Lourenço – permite-nos frequentar um dos mais incomparáveis mestres dos caminhos interiores, pois «nem Dostoievski nem Nietzsche desceram no labirinto de si mesmos com mais audácia». É aperceber-se da substancialidade quase palpável do mal, como a descreveram na modernidade autores como Franz Kafka ou Samuel Beckett, mas ao mesmo tempo compreender como a Graça subverte a extensão do mal, afirmando aquela divina omnipresença do Amor que redime a história. É, escândalo dos escândalos, pensar a existência humana não «irremediavelmente confinada na sua finitude e no seu abandono ao silêncio do universo», mas como projeto inscrito numa história de salvação.
Não, não basta reconhecer que a teologia agostiniana representou o ápice da patrística latina e é aquela que mais influenciou a ocidente a teologia dos séculos seguintes, praticamente em todos os âmbitos: da doutrina trinitária à cristologia, da eclesiologia ao tratado dos sacramentos, da visão do pecado original ao pensamento da graça, da teologia da história à escatologia. A sua musealização, porém, comportaria um dececionante distanciamento em relação ao presente. De facto, perderíamos tanto se pensássemos nos escritos que compõem este livro simplesmente como documentos que acompanharam as crises e transformações que os cristãos viveram nos dramáticos anos de transição entre o IV e o V século da nossa era. Ou então como prestigiosos atestados do génio de Agostinho, capazes ainda de nos deslumbrar intelectualmente e de fazer-nos saborear um refinado prazer estético através da sua exegese bíblica (coisas que o primeiro auditório dos sermões também sentiu), mas só isso.
Santo Agostinho pregou durante trinta e nove anos e, falando da sua experiência, confessava que nada o entristecia mais do que aquelas ocasiões em «que a minha língua não está à altura do meu coração»[2]. Isto é, quando sentia que as palavras com que comunicava, apesar de todo o brilho, ficavam ainda assim aquém da experiência contemplativa e espiritual que o consumiam interiormente como um fogo. O mesmo podemos transpor para avaliar a leitura que fazemos destes Sermões. É necessário que os nossos ouvidos e os nossos olhos estejam à altura do nosso coração, para que a voz que aqui nos fala (que é a voz de Agostinho, mas é sobretudo a voz da Escritura e a voz de Deus) nós a possamos conhecer, e não superficialmente, mas «em todas as suas tonalidades, e senti-la intimamente, fazê-la nossa»[3].
Talvez precisemos aprender da ousadia de alguns dos protagonistas, esperados e inesperados, que têm contribuído para a valorização contemporânea de Agostinho. Um esperado é o papa Bento XVI que dedicou ao Mestre de Hipona já a sua tese de doutoramento, focando-se em torno aos conceitos de Povo e Casa de Deus no ensinamento dele sobre a Igreja. Ratzinger tinha vinte e cinco anos e o encontro com Agostinho tornar-se-ia um encontro para a vida. Na biografia escrita por Peter Seewald[4], o Papa emérito relata uma série de episódios em que a figura e o pensamento de Agostinho representaram uma decisiva inspiração. Desde o modo de entender o mistério da Igreja e da vida cristã até, num registo mais íntimo, a maneira de viver os sacrifícios pessoais requeridos pelo exercício do ministério episcopal. A este nível, por exemplo, foi muito importante a exegese que Santo Agostinho faz do Salmo 73. O salmo descreve as fadigas da fé e nos v.22-23 diz: «ut iuméntum factus sum apud te, et ego semper tecum» (como um jumento, um animal de carga, estou diante de ti, mas estou sempre contigo). Escreve Bento XVI: «Agostinho via [aqui] expressos o peso e a esperança da sua vida. O que ele encontra nestes versículos, e que apresenta no seu comentário, funciona como um seu autorretrato, desenhado diante de Deus. Não é apenas um pensamento piedoso. É sim explicação da vida e luz no caminho. Ora, aquilo que Agostinho escreve aqui pareceu-me representar o meu destino pessoal»[5].
Outro vulto a dedicar a Agostinho o seu estudo de doutoramento foi também a filósofa Hannah Arendt, abordando por sua vez o conceito de amor[6]. O enfoque de Arendt não foi tanto o do ponto de vista metafísico e ontológico: incidiu preferencialmente sobre os aspetos mais fenomenológicos e existenciais. Mas o autor dos Sermões tornou-se, para lá deste momento seminal, o ponto de referência permanente desta pensadora crucial da contemporaneidade a quem devemos uma reflexão iluminante sobre o agir humano na história, a relação do homem com os outros homens («As origens do totalitarismo», 1951), a atomização da pessoa na sociedade de massas («A condição humana», 1958) ou a violência e a banalização do mal («A banalidade do mal», 1963). À sua maneira, Hannah Arendt testemunha bem como ousar trazer o pensamento de Santo Agostinho ao presente é uma operação fecunda, com a qual muito temos a ganhar.
Da persistência de Agostinho na contemporaneidade nos fala um outro (inesperado) protagonista: o cantor Bob Dylan, prémio nobel da literatura (2016). Uma das suas canções mais emblemáticas, interpretada por ele e por muitos outros artistas ao longo destes anos (a canção aparece pela primeira vez no álbum «John Wesley Harding», de 1967) intitula-se «I Dreamed I Saw St. Augustine». E a letra diz: «Sonhei que vi Santo Agostinho/Vivo com hálito de fogo/Vivo como tu ou como eu/ “Levanta-te, levanta-te”, gritava ele bem alto...». Trata-se, naturalmente, de um sonho, de uma ficção poética. Mas este «Levanta-te, levanta-te», serve-nos como incitação a seguir.
No encerramento do Concílio Vaticano II (em cujos documentos, por exemplo, um dos autores patrísticos mais citados é precisamente Santo Agostinho), o Papa Paulo VI, dirigindo-se aos Homens de Pensamento e de Ciência, afirmava: «Lembrai-vos da palavra de um dos vossos grandes amigos, Santo Agostinho: “Procuremos com o desejo de encontrar, e encontraremos com o desejo de procurar ainda”. Felizes os que, possuindo a verdade, a procuram ainda, a fim de a renovar, de a aprofundar, de a dar aos outros. Felizes os que, não a tendo encontrado, caminham para ela com um propósito sincero: o de procurarem a luz de amanhã com a luz de hoje, até à plenitude da luz»[7]. É uma mensagem oportuna para os leitores desta obra.
Não seria justo terminar este texto prefacial sem uma palavra de louvor e de agradecimento a quantos meteram mão a este labor, de que agora gerações poderão beneficiar. Ao tradutor José António Gonçalves pelo trabalho aturado e competente realizado e que é fruto – como se torna claro ao longo da leitura – de muita entrega, entusiasmo e saber de ofício. A Isidro Pereira Lamelas, um excelente patrólogo que temos a graça de ter, pela sapiente Introdução e notas que tornam este volume ainda mais precioso. Ao Secretariado Nacional da Liturgia e à Comissão Episcopal da Liturgia e Espiritualidade na pessoa do seu Presidente, D. José Manuel Garcia Cordeiro, o investimento fundamental que publicações como esta representam na formação do Povo de Deus. Cumpre-se deste modo aquilo que Santo Agostinho escreveu numa carta a São Jerónimo: «Se adquiro uma migalha que seja de saber [da Sagrada Escritura], transmito-a imediatamente ao Povo de Deus»[8].
José Tolentino Card. de Mendonça
Arquivista e Bibliotecário da Santa Igreja Romana
[1] Eduardo Lourenço, «Santo Agostinho: tabu do Ocidente?», Didaskalia, 19/1(1989), 69-79.
[2] De catechizandis rudibus, 2.4.
[3] Enarrationes in psalmos, 56.11.
[4] Peter Seewald, Benedetto XVI. Una Vita (Milano: Garzanti, 2020).
[5] Joseph Ratzinger – Benedetto XVI, La mia vita. Autobiografia (Milano: San Paolo, 2013), 156.
[6] Hannah Arendt, O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Ensaio de Interpretação Filosófica (Lisboa: Instituto Piaget, 1997).
[7] https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/speeches/1965/documents/hf_p-vi_spe_19651208_epilogo-concilio-intelletuali.html
[8] Epist.73.2.5.