A alma e a cítara
O que os salmos dizem de nós
Autor: Luigino Bruni (Coordenador do projecto Economia de Comunhão, professor na Universidade Lumsa de Roma e no Instituto Universitário Sophia em Loppiano, Florença)
Tamanho:148X210mm
N.º de páginas: 200
ISBN 978-989-8877-97-0
1ª edição: junho de 2021
Coleção: Hodie – 3
Os salmos ajudam-nos, e de que maneira, a reler os nossos tempos e a nossa geração à qual, escreve o autor, “não falta apenas a fé; falta-lhe, sobretudo, a esperança e o desejo da espera”.
“Procurei a economia dentro da Bíblia e encontrei a Bíblia dentro da economia” – mais do que um simples trocadilho, a afirmação de Luigino Bruni, autor deste livro, retrata um percurso de buscador apaixonado. A de quem também, em outra ocasião, justificava o “desvio” da economia, com o facto de se lhe terem esgotado as palavras para falar de economia e estar assim à procura de palavras novas. O autor adverte-nos que os salmos, “concentrado de toda a Bíblia”, “não se comentam. Rezam-se, cantam-se, gritam-se.
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Apresentação
Há quem – na liberdade de uma consagração ou, simplesmente, de um empenho pessoal – faça da recitação diária dos salmos um horizonte de sentido e de sã e serena inquietação. Marcam o tempo e os tempos, ligam-nos entre todos os que assim o fazemos, nas mais diversas formações de “coro” (também para aqueles que os rezam sós), alargam-nos o sentir para além de nós e ao ritmo do que a humanidade vive. São uma espécie de “céu” que a todos nos envolve e acomuna.
E, ainda que com declinações e acentuações diferentes, o que dizemos do livro dos Salmos podemos referi-lo a toda a Bíblia. Aí chegamos – e daí sempre de novo partimos – com o que somos e fazemos, com as nossas alegrias e desilusões, com tantas dúvidas e interrogações. Aprendemos a apresentar-nos com as nossas vestes de ofício e profissão, com o que temos na mente, no coração ou entre mãos, nem que seja alguma sujidade. Impressionava-me a este propósito, a reação de colega, quase nonagenário, quando, há tempos, de regresso do campo e instado a lavar as mãos para a oração antes da refeição, respondia, aos que o esperavam, com humor e sabedoria: “Para rezar não é preciso lavar as mãos”! Lavou-as, depois, após a oração e antes de se sentar à mesa.
“Procurei a economia dentro da Bíblia e encontrei a Bíblia dentro da economia” – mais do que um simples trocadilho, a afirmação que ouvi um dia de Luigino Bruni, autor do livro que o leitor tem agora entre mãos, retrata um percurso de buscador apaixonado. A de quem também, em outra ocasião, justificava o “desvio” da economia, com o facto de se lhe terem esgotado as palavras para falar de economia e estar assim à procura de palavras novas.
Os passos de Luigino Bruni cruzaram-se e fizeram-nos cruzar, nesta última década, por entre personagens que vão de Adão a Job, de Abraão e Moisés a Isaías e Jeremias, de Samuel e Ezequiel a Salomão e ao rei David...[1] Estes nomes e as páginas em que se inscrevem tornaram-se mais vivos para os que semanalmente temos tido o privilégio de os encontrar, pela mão do autor, em cada Domingo, no jornal quotidiano italiano Avvenire. Nele, de facto, construíram-se semana a semana, sob a forma de “editoriais”, os capítulos de um já vasto número de obras como comentário a outros tantos livros do Antigo Testamento. É o caso agora desta que aqui apresentamos em português.[2]
Em todas essas publicações – e mais especialmente talvez em “A alma e a cítara” – encontramos, sim, esse horizonte como céu, mas pisamos bem firme a terra. Pelas mãos do autor, sem dúvida, e pelas mãos de quem o autor se deixa conduzir. E pelos pés – passos firmes – do chão que toca.
Não é indiferente a condição de economista que Luigino Bruni é e continua a ser e ao nível da docência e investigação universitárias na área da história do pensamento económico. É talvez antes a chave para nos ajudar a inscrever o nosso caminho na casa que, juntos e como humanidade, somos chamados a edificar, gerir e habitar. E perante tal moeda perdida e reencontrada, também nós e com a sua ajuda, nos podemos alegrar por tantos encontros “inesperados” e que estas páginas nos ajudarão a viver.
À partida, o autor adverte-nos que os salmos, “concentrado de toda a Bíblia”, “não se comentam. Rezam-se, cantam-se, gritam-se. São demasiado humanos, demasiado imbuídos de dor e de amor, demasiado cheios de homem e de Deus” para logo reconhecer, com humildade, ficar certamente “na periferia do seu mistério” (p. 12).
Mas talvez seja essa – a periferia – a melhor localização para, pelo menos, o balbuciar. E à mesma pode-se chegar a partir da normalidade e laicidade da vida, “entrando como ímpio, sentindo-se justo” para, no fim, “se o caminho funciona”, sair justos, sentindo-se ímpios (p.15).
Como oração, que sobretudo são, os salmos assim abordados, alargam a interioridade. E em tal oração a pessoa “já não se sente escrava porque libertada e, como livre, consegue libertar Deus das armadilhas em que a teologia e a religião o fecharam” (p. 44). Ou ainda: “(...) aprendemos quem é Deus, observando os homens e as mulheres, porque, juntamente com o “céu estrelado e a lei moral”, é a vida concreta dos seres humanos que nos revela a gramática divina (...). Por isso, sempre que nos encontramos vazios de palavras para rezar, podemos olhar também as pessoas que trabalham e, ali, reaprender a rezar. Pastores, operários, artesãos, professores, empresários – quem sabe como aquele antigo poeta escreveria o seu Salmo numa sociedade pós-industrial?” (p. 84).
É nessa condição de liberdade que “as palavras mais verdadeiras e elevadas acerca de Deus nascem (...): das comunidades que sabem dizer palavras bonitas e elevadas sobre os homens e as mulheres” (p. 29). Porque (...) quando o «Filho do homem voltar» não irá aos templos e às igrejas, para ver se «há fé sobre a terra» (Lc 18,7-8). Olhará para as nossas relações sociais: verá se nos queremos bem ou mal, olhará para a nossa banca, a nossa evasão fiscal, os nossos hospitais, os salários dos trabalhadores e os dos administradores. E, se ainda houver a fé, encontrá-la-á somente na justiça e na verdade das nossas relações; se ainda houver, poderá reconhecê-la na forma como respondemos à esperança do miserável ” (p. 64).
O caminho não cessa nunca e é de caminho também – e de que modo – que os salmos nos falam: “As peregrinações continuam e devem continuar, porque quando deixamos de peregrinar à procura de Deus, caminhamos apenas para procurar os ídolos nos seus átrios sem entrada. Aquele Deus que nos espera no fim da viagem, já caminha viajante no meio de nós (Mt 18,20), sem um ninho para descansar. E, uma vez chegados ao patamar, nã̃o perguntemos: “onde está Deus?” mas “onde estamos nós?”. (...) “Se um dia desaparecessem todos os templos, se todo o mundo se tornasse um grande templo vazio (ou já o é?), dois ou mais peregrinos poderão repetir a mesma experiência maravilhosa do salmo 84[83], poderão entoar, no mesmo patamar, o seu canto” (p. 118).
É então esse um caminho em que se aprende “a contar bem os dias quando, numa manhã, voltamos ao escritório e, embaralhados nos mesmos papéis de sempre, rodeados pelos mesmos colegas, sentimos na nossa secretária a própria vibração do universo, revemos no movimento da nossa chave de fendas o mesmo reflexo do gesto ordenador de Elohim [Deus], na primeira manhã da criação” (p. 129).
Os salmos ajudam-nos, e de que maneira, a reler os nossos tempos e a nossa geração à qual, escreve o autor, “não falta apenas a fé; falta-lhe, sobretudo, a esperança e o desejo da espera” (p. 39), para noutra passagem afirmar – e a fazer ecoar o nosso Card. Tolentino Mendonça – que a “crise da fé não é a aridez mas a extinção da sede. Enquanto conservarmos a sede de Deus e da vida, estamos a caminhar no único caminho bom, melhor ainda se na companhia dos pobres e dos sedentos e famintos” (p. 99).
Nas linhas e, sobretudo, nas entrelinhas encontramos assim a marca do tempo em que estes textos foram escritos: entre março e novembro de 2020 o que equivale a dizer entre a eclosão da pandemia da Covid-19 e a sua persistente continuidade, sobre o chão de Itália, país tão martirizado por ela sobretudo no primeiro impacto. Mas “é nos exílios que se têm os sonhos maiores” (p.18).
Não resta, por fim, se não desejar boa viagem, a quantos se aventurarem nestas páginas com, na outra mão, o livro dos Salmos, os passos decididos sobre a terra e o olhar para além de nós, no Céu e no céu que se declina à nossa volta. É aconselhável, entre etapas, um tempo para recuperar o fôlego – e o horizonte e sentido – em sintonia até com o ritmo com que elas foram criadas: as dos salmos e as das palavras com que Luigino Bruni os desdobrou nestes agora 31 capítulos. Umas e outras não nasceram como livro e umas e outras assim, como etapas, podem ser talvez mais fecundamente percorridas.
E no fim – que pode ser também o início deste caminho – redescobriremos, com o autor, que “para este louvor cósmico e laico, o templo é um bosque, um escritório, o coração de um tentilhã̃o, o mar, uma galáxia. As realidades mais importantes da vida não as criamos nós com as nossas ações nem com as nossas palavras. São e basta. As nossas criações são preciosas, quase essenciais, por vezes. Mas o que é verdadeiramente essencial é o que é, é o que somos, o que a vida é porque é vida. Porque estamos rodeados por um amor infinito e não o sabemos, Aleluia!”(p. 195)
Grottaferrata (Roma), 27 de Março de 2021.
P. António Bacelar,
Diocese do Porto / Centro Internacional do Movimento dos Focolares
[1] Significativo a este propósito o encontro com Jacob na sua luta com o anjo (Gn 32,24-32), inspiração para a obra A ferida do outro. Economia e relações humanas” (Ed. Cidade Nova 2010) e que abre este percurso bíblico do autor, de modo esplêndido e estimulante.
[2] Para além da obra referida acima, em português foi também traduzido Redescobrir a Árvore da Vida – um economista lê o Livro do Génesis (Ed. Cidade Nova, 2015).