- Novo
Do Lava-Pés à vida do Ministro Ordenado
Por uma teologia de ‘assemelhação’
Autor: João Patrício
Tamanho:148X210mm
N.º de páginas: 176
ISBN 978-989-9081-81-9
Coleção: Hodie – 15
Excerto e índice »
Vivemos num tempo em que a identidade do presbítero é colocada cada vez mais em questão pelas mais diversas razões e causas. Passámos de olhar o presbítero como uma figura separada do comum do Povo de Deus, para olharmos para a figura do padre como um igual aos outros exceto com a única diferença do seu ministério. Ora, com medo do extremismo da figura “santificante” do padre, passámos para o outro extremo da figura “igualitária” do padre. E tanto uma posição como outra são completamente erradas.
Procurámos, ao longo deste trabalho traçar um itinerário do lava-pés até à vida do ministro ordenado, através da exegese, liturgia e teologia, tendo sempre como pano de fundo a atitude de Jesus para com os seus Apóstolos no momento em que decide colocar uma toalha à cintura e lavar-lhes os pés chegando pois à vida de cada ministro ordenado que, ao aceitar o convite do Mestre se predispõe a realizar, viver e anunciar aquilo que Jesus fez, disse e viveu.
Em tudo isto, é importante realçar que, só conseguimos uma verdadeira teologia do ministério ordenado quando contemplamos os gestos de Jesus, o único Sacerdote e a partir daí percorremos todo o caminho que nos levará à vida entregue a este mesmo Messias assemelhando-nos cada vez mais à sua atitude servil e humilde.
Que há de estranho no lavar os pés?
Prefácio
«Mas, por que nos admiramos
que, já perto da morte voluntária,
tirasse os vestidos
e cumprisse o ofício de servos,
quando, sendo Deus, ele se aniquilou?»
[Anáfora de Quinta-Feira Santa da liturgia hispânica]
Estranhas concomitâncias. Poderá constituir fonte de admiração a partida do lava-pés (cf. Jo 13,1-15) para umedecer os gestos e as palavras, os pensamentos e a imaginação profética – no fundo, a vida íntegra e testemunhal – dos ministros ordenados? A quem hão de assemelhar-se? Àquele que, nos modos descidos e despojados de um servo, lavou os pés aos seus amigos? Porquê, nesta linha-de-sangue-e-água, remar contra certos ventos que, do quadrante do revivalismo sacral, inclinam mais para a ‘separação’ do que para a ‘assemelhação’?
Atualmente, urge esclarecer melhor a teologia do sacerdócio ordenado, afastando exaltações ambíguas. O mesmo se diz em relação à do sacerdócio batismal. Pois, como se recorda na constituição dogmática Lumen Gentium, «o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, embora se diferenciem essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se mutuamente um ao outro; pois um e outro participam, a seu modo, do único sacerdócio de Cristo» (LG 10). É na riqueza das diferenças que a unicidade esplende. Sem a sua mútua ordenação, que é o sacerdócio de Cristo?
Acentuações descabidas, e nesse desviar reducionistas, podem dar origem às piores doenças ministeriais na comunidade eclesial. Desde logo, uma conceção ontologizante, de identificação sem mais nem distância, apresentando os ministros ordenados como «alter Christus». Tal realismo ingénuo, que não discerne os modos da participação sacramental no sacerdócio de Cristo, que é único, pode, em última instância, gerar abusos de poder, entre outros. Todos eles desfiguram, quer o agir, quer a mensagem de Jesus. E, por consequência, são anulados no antitestemunho dos seus discípulos.
Na frescura do lavacro pelo serviço
Daí a pertinência do presente livro. O seu autor aprofunda uma temática que está na ordem do dia. A reflexão nele contida, como tantos outros meios, pode constituir-se, não só ao nível da prevenção, mas também da cura, como fármaco para debelar doenças, como é, por exemplo, o clericalismo. Assim o recordava, em termos de derrota, o Papa Francisco, falando de improviso, no dia 25 de outubro de 2023, no decorrer da 18ª Congregação Geral da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos: «O clericalismo é um flagelo, é uma chaga, é uma forma de mundanidade que suja e danifica o rosto da esposa do Senhor; escraviza o santo povo fiel de Deus». E, sem peias na língua nem rodeios de conveniência, concretiza com exemplos: «Quando os ministros excedem o seu serviço e maltratam o povo de Deus, desfiguram o rosto da Igreja com atitudes sexistas e ditatoriais. […] É doloroso encontrar em algumas secretarias paroquiais a “tabela de preços” dos serviços sacramentais em estilo supermercado. Ou a Igreja é o povo fiel de Deus a caminho, santo e pecador, ou acaba sendo uma empresa de serviços variados. E quando os agentes pastorais tomam este segundo caminho, a Igreja torna-se o supermercado da salvação e os padres meros funcionários de uma multinacional. É a grande derrota a que nos leva o clericalismo. E isto com muita vergonha e escândalo (basta ir às alfaiatarias eclesiásticas de Roma para ver o escândalo dos jovens padres experimentando batinas e chapéus ou alvas e roquetes com renda)» (Francisco 2023).
Ainda bem que, liberto disto, ditei num haiku: «os anjos/ preferem os jardins/ às insígnias» (Félix de Carvalho 2024, 107). Porém, como os ministros não são anjos, – valha-nos a ironia com generosa dose de bom-humor –, talvez se possa acrescentar que não são somente certos «jovens padres» que apreciam tais indumentárias. Ah! E aqueles que das insígnias levíticas (cf. Lev 8,13) não se separam? Nem depois de Mercedes Loring, monja espanhola das Irmãs da Assunção, no alto dos seus 95 anos, ter solicitado ao Papa que acabasse com as mitras dos bispos, justificando: «Não imagino que Jesus tivesse estas pretensões. Os seus representantes devem dar testemunho de simplicidade e o solidéu já é suficiente» (Loring 2020). Sugestão que, aliás, teve centenas de adesões (cf. Vidal 2020).
Nos antípodas destas roupagens, João Pedro Martins Patrício oferece aos leitores, nesta sua primeira publicação em livro, e como fruto de tantas horas, um investimento teológico. «Por uma teologia de ‘assemelhação’»: assim concretiza ele, para a vida de cada ministro ordenado, a pregnância crística do gesto do lava-pés. Desnudada de artifícios literários e adereços efémeros da moda, a sua reflexão ousa um ritmo performativo. Descendo ao fundo da bacia, assinala, na limpidez da água, linhas de orientação para os pés dos humildes cuidadores da vinha do Senhor. E, por hospitalidade a cumprir-se, para os pés a lavar de toda a pessoa que caminha pelo mundo. O pó, essa leveza, sempre será atraída aos tornozelos. Porém, tal como as plantas – sombras nas quais cada caminhante se apoia – darão seus frutos, se a água lhes chegar. Sim, na frescura do lavacro pelo serviço mútuo.
Porque nos admiramos?
Servindo-se da teologia mistagógica, João Patrício ilumina a ação litúrgica a partir da hermenêutica bíblica do gesto de Jesus. Há quem estranhe a iniciativa de Jesus, que se despoja das vestes e, com a toalha cingida nos flancos, começa a lavar os pés. Desde logo, Pedro, que é o primeiro a recusar-se: «Senhor, Tu vais lavar-me os pés?» (Jo 13,6). É uma estranheza partilhada. Creio que, ainda hoje, Jesus poderia dizer a quem se surpreende com o seu lava-pés: «O que eu faço não o sabes tu agora, mas tu o saberás depois» (Jo 13,7).
Existe na liturgia hispânica, que tem uma enorme riqueza de formulários para a oração eucarística – mais de duas centenas! –, uma anáfora para o dia de Quinta-feira Santa. É uma peça eucológica repleta de imagens, cujo ritmo se faz em crescendo, com muitas comparações em paradoxo e linguagem interrogante e exclamativa. Na Inlatio (corresponde ao Prefácio na oração eucarística romana), após o protocolo inicial (em diálogo, e aberto com a trinitária saudação paulina, presente nas epístolas), enunciam-se os motivos de louvor. Entre estes, surge naturalmente o do lava-pés. Porventura de um modo que nos poderá surpreender. Sim, com um cânone-em-perguntas, nascidas do estranhamento! Assinalando o ritmo da partição frásica da fonte adotada, transcrevo-o traduzido para português, dado o excecional impacto que poderá causar nos leitores: «Hoje ele entregou-se a si mesmo por nós/ e quebrou as amarras dos nossos pecados./ Para mostrar aos crentes/ a sua bondade e humildade sem limites,/ não hesitou em lavar os pés daquele que o entregou,/ sabendo que aquelas mãos/ estavam manchadas com o crime».
É verdade, não hesitou em lavar e enxugar os pés de Judas Iscariotes. Poderá isto surpreender-nos? Pode. Todavia, o alcance da admiração dilata-se nas perguntas que se seguem: «Mas, por que nos admiramos/ que, já perto da morte voluntária,/ tirasse os vestidos/ e cumprisse o ofício de servos,/ quando, sendo Deus, ele se aniquilou?». Salientámos já esta interrogação na epígrafe. Ainda assim, seguem-se outras três, focadas na estranheza que, na realidade, não teria que persistir, pois deveria ser fonte de espanto, atendendo ao alcance do gesto de Jesus: «Que estranho é que se cingisse com um pano/ ele que, assumindo a forma de servo,/ se mostrou como homem?/ Que estranho é que ele derramasse água na bacia/ para lavar os pés dos discípulos/ aquele que derramou o seu sangue/ para o perdão dos pecados?/ Porquê admirar-se de que, cingido com a toalha,/ secasse os pés que acabava de lavar,/ quem, revestido de carne,/ deu firmeza aos pés dos evangelizadores?».
Associada aos mistérios da celebração deste dia, a fonte de espanto continua a promanar na Inlatio. No entanto, o remate do ‘cânone do lava-pés’ faz-se em tom declarativo: «Na verdade, ele despojou-se das vestes que tinha antes/ para cingir-se com o pano da nossa carne» (Sánchez Caro 1969, 354). A carne como pano? Sim, Ele cingiu-se na incarnação para lavar e enxugar esse pano.
Acesso inesperado ao novo sacerdócio
Melhor se compreenderá, no primeiro capítulo deste livro, o manancial do assombro. Nele, de forma perscrutadora, típica dos estudos bíblicos, João Patrício procede à leitura exegético-teológica do texto iluminador do presente estudo: Jo 13,1-20. Gesto a gesto. Palavra a palavra. Instante a instante. Deixar o manto e tomar a toalha. Levantar-se, baixar-se; e, desde esse baixio, erguer o olhar e a exclamação abraçada à pergunta. Molhar as mãos e os pés. Na atenção a estes e a outros detalhes, a leitura cresce, cresce humildemente na ‘ruminação’ da intensidade daquela Hora. Por sua vez, a sombra branca do futuro próximo incide nos discípulos, embaciando os seus olhos, abrindo-os a um ver outro. E, no lento apagar do diurnal da pressurosa compreensão, a beleza adentra-se-lhes no pensamento como um lucernário. Esperançadamente, no crepuscular deste «agora», e comungando da lenteza de transição, também nós, e demais leitores, nos descobriremos tardos. Sim, naquele «depois» (Jo 13,7).
No capítulo sucessivo, o autor recenseia muitas das práticas do lava-pés, segundo o mandato de Jesus. Todas elas atestam, ao longo da História da Igreja, o desejo de obediência dos seus discípulos. Efetivamente, através das várias épocas culturais, o gesto de Jesus foi interpretado, como mimese litúrgica e para-litúrgica, em contextos e momentos diversos, até à sua fixação atual na missa de Quinta-Feira Santa. Nas suas declinações rituais, a partir da sua raiz evangélica, este lavacro observou-se na liturgia batismal e pós-batismal, nos costumes monásticos, diocesanos e da Igreja romana, como rito de preparação sacramental e de acolhimento dos pobres e peregrinos. Eis porque, nos últimos tempos, o Papa Francisco privilegia grupos de pessoas vulneráveis, nomeadamente residentes em estabelecimentos prisionais, para o concretizar fora da basílica de S. Pedro no Vaticano.
Atento, João Patrício menciona também raros e sobreviventes costumes locais, como o da tradição litúrgica bracarense, a qual se cumpre em substituição do ato penitencial da missa do início do Tríduo Pascal (cf. Félix de Carvalho 2018). Também impressivo é o que se pratica na para-liturgia das comunidades da Arca – fundada, em 1964, por Jean Vanier –, nas quais são as próprias pessoas com necessidades especiais que lavam reciprocamente os pés (cf. Vanier 1983). Outro, ainda, é aquele que se faz em certos grupos de jovens do CNE: cortado um baralho de cartas, distribuem-se as partes à sorte; depois, o lava-pés faz-se entre aqueles que detêm as respetivas metades de cada carta.
Passo a passo, o processo mistagógico cumpre-se. No terceiro capítulo, João Patrício introduz-nos, com a frescura marulhante do lava-pés, na vida do ministro ordenado. E, como refere no subtítulo, investe «Por uma teologia de ‘assemelhação’». Precisamente nesta última parte do livro, ele desenvolve uma pertinente teologia do sacerdócio. Alicerçando-se em Cristo – que faz da sua vida uma oblação agradável em favor de muitos (cf. Mt 20,28), e cujo serviço se interpreta à luz do lava-pés –, João Patrício denuncia os muros e véus de separação, típicos das antigas conceções sacrais do sacerdócio. Para isso, reconhece como umbrais da novidade a consumação crística do Servo Sofredor, cantado por Isaías (cf. Is 52,13-53,12), e a reflexão sobre o novo sacerdócio inaugurado por Jesus, realizada pelo autor da carta aos Hebreus.
O estilo do ministro ordenado, segundo as qualidades e os desafios de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, é traduzido em função das circunstâncias no mundo contemporâneo. Mas, note-se, tendo por sólido alicerce a teologia fundamental do sacerdócio. Nisto, o autor não se apresenta sozinho, desprovido de fundamentos e de autores de relevo. Aliás, muitos destes conferenciaram em contextos de grande atualidade, nomeadamente em dois eventos: no congresso internacional «À escuta da Palavra», sobre o presbítero, realizado em Braga de 12 a 15 de janeiro de 2010 (cf. Seminário Conciliar de Braga 2011), e no simpósio «Para uma Teologia Fundamental do Sacerdócio», promovido pelo Centre de Recherche et d’Anthropologie des Vocations, que se realizou em Roma, no ano de 2023 (cf. Ouellet 2013). Como seria de esperar, João Patrício cita muito. Porém, não se restringe ao simples exercício da transcrição, pois entretece os contributos dos autores colacionados com a sua reflexão. E, neste ponto, talvez com uma linguagem mais simples e coloquial, mas sem deixar de ser incisiva, compõe uma proposta de grande pertinência pastoral, em termos de espessura espiritual.
Reevocando um dos autores por ele abundantemente citado, gostaria de terminar com um especial sublinhado, colhido na conferência que fez no Congresso Internacional «À escuta da Palavra». Refiro-me a D. António Couto, atual bispo de Lamego, diocese do João Patrício. Na conferência intitulada «Há-de cumprir-se o sacerdócio», na qual medita detidamente sobre a Carta aos Hebreus, ele coloca em destaque o seguinte: «Para tanto, e no que se refere a Cristo e ao Sacerdócio, ao Sacerdócio de Cristo, a Carta aos Hebreus vai apresentar a forma como se concebe e se acede ao sacerdócio de uma forma completamente inesperada. E o inesperado está nisto: a condição para aceder ao SUMO-SACERDÓCIO consiste na total assemelhação aos homens, devendo Cristo tornar-se em tudo semelhante aos seus irmãos, conforme a grande lição de Hb 2,17» (Couto, 26). Pelo que, retirando consequências desta grande lição, António Couto faz uma «conclusão indicativa», com sete «marcadores principais, que apontam bem a missão do sacerdote à maneira e conforme o estilo de Jesus», que me dispenso de transcrever, mas para os quais remeto a vossa leitura. Todavia, e apontando ao estilo do sacerdócio segundo Cristo, tenho imperiosamente de terminar com as suas palavras: «A história do exercício pós-apostólico do sacerdócio (desde Jesus Cristo e os Apóstolos até hoje) trata-se em poucas linhas: umas vezes seguiu o marcador da assemelhação, da misericórdia e da dedicação e do despojamento, e outras vezes resvalou para a separação, a severidade e a ostentação. É tempo de regressar ao essencial, isto é, a Cristo» (Couto, 35).
Estranhas concomitâncias? Não. A surpresa poderá advir, sim, mas só para quem se desvia do essencial, da lição do lava-pés, da misericórdia, do assemelhar-se. Por coincidência, a defesa deste texto, – apresentado como dissertação de Mestrado Integrado em Teologia, no campus de Braga da Universidade Católica Portuguesa –, sucedeu a 22 de março deste ano, dia em que, no Ofício de Leituras da Liturgia das Horas, se lia uma passagem sobre «o sacerdócio eterno de Cristo» (Hb 7,11-28). Aliás, durante toda esta semana, leem-se trechos da Carta aos Hebreus sobre o novo sacerdócio de Cristo. E, na semana seguinte, sucederia o rito do lava-pés.
O presente livro reproduz, em fotografia, uma bela escultura que se encontra num dos portais (sé. XII) da Abbatiale Saint-Gilles du Gard, no departamento do Gard, França, que tive oportunidade de apreciar in loco. Em sintonia com o primeiro capítulo, podemos dizer que, nela, todos os detalhes são preciosos. Que belos gestos, esculpidos na pedra! Quanto mais não serão, se esculpidos na carne de cada ministro ordenado, ou de quaisquer outros dos discípulos de Jesus! O grande desafio passará por responder à pergunta de Jesus: «Compreendeis o que vos fiz?» (Jo 13,12). E, por consequência, praticar o que Ele nos aponta como estilo, em tudo exemplar: «Se Eu, que sou mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13, 14-15). Quem poderá resistir ao lava-pés?
Joaquim Félix de Carvalho
Braga, 20 de maio de 2024