A inteligência da liturgia
Autor: Paul De Clerck
Tamanho:148X210mm
N.º de páginas: 240
ISBN 978-989-9081-03-1
1ª edição: janeiro de 2022
Coleção: Hodie – 6
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A liturgia, no conjunto dos seus gestos e movimentos, nos seus textos e ritos, é portadora de sentido; contém e transmite uma visão e interpretação da existência humana, da fé, do próprio Deus. Vale, pois, a pena – eis o segundo significado do livro – aplicar e empenhar nela a inteligência para apreender todo o seu valor. Surge aqui, porém, o paradoxo. “Não se possui o que de vós se apossa”, diz o poeta. Uma celebração não se dá a compreender só pela razão. Ação simbólica e ritual, dirige-se ao ser na sua totalidade, corpo e espírito, e apossa-se dele pelos seus cantos, pelo encontro com outrem, pela Palavra de Deus que nela ressoa, pelas luzes que iluminam a Noite. Quando por ela nos deixamos captar, revela todos os seus tesouros e ficamos maravilhados com as riquezas que ela guarda e esconde. Em tom pessoal, o autor mostra e ensina como entrar na liturgia, como ouvi-la e saboreá-la, desde que seja olhada como uma ação comum, que envolve o corpo e implica os sentidos. O seu significado teológico é também mais forte do que amiúde se suspeita. A liturgia induz os que nela participam a uma peculiar percepção do espaço e do tempo. Comunica-lhes, de forma viva, um sentido da cultura e de Igreja. Estimula-os e modela-os por meio das suas palavras e da sua música, pelos movimentos em que ela os enleia.
Paul De Clerck, nascido em Bruxelas em 1939, sacerdote da diocese de Malines-Bruxelas, foi professor do Instituto Superior de Liturgia (Instituto Católico de Paris), do qual foi diretor de 1986 a 2001.
Lecionou no Centro de Estudos teológicos e pastorais de Bruxelas (1970-1998). É membro da Societas liturgica, da qual foi presidente (1989-1991), da Associação Europeia de Teologia Católica, da comissão científica das “Sources liturgiques” e do Instituto de teologia ortodoxo Saint-Serge de Paris.
Apresentação
Quase 60 anos depois da promulgação da Constituição sobre a Liturgia, SC, (4 de dezembro de 1963) podemos legitimamente perguntar-nos se o seu propósito de “fomentar a vida cristã entre os fiéis… promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja… pelo incremento da Liturgia” fez estrada entre nós, e se todos as prescrições de reforma, já há tanto tempo em ato, alcançaram os seus objetivos.
Para ousar uma resposta “inteligente” há que situar a liturgia dentro de um tratado de ‘Teologia da liturgia’ mais do que ‘Teologia dos sacramentos’, mesmo se o âmbito geral é semelhante. Efetivamente, a liturgia é fundamentalmente uma ação, uma – urgie, enquanto que a teologia é uma – logie, um logos. Para P. De Clerck é claro que a teologia é uma disciplina da ciência litúrgica, afastando a tentação de reduzi-la à história da liturgia, esta propõe-se estudar sob uma multiplicidade de diversos aspetos a especificidade dos atos que chamamos litúrgicos. O apelo à história é imprescindível, mas também o estudo dos ritos, que conheceram grandes evoluções, e ainda o ‘património’ que foi criado para em cada momento celebrar a liturgia. A par desta abordagem é imprescindível o estudo antropológico da liturgia pois esta não se limita a textos ou palavras, ela é em si mesma fruto da ação de um grupo de pessoas, com a sua sociologia e a sua psicologia religiosa; e se tirará seguramente grande resultado do estudo dos lugares nos quais a ação litúrgica se desenrola, os gestos e as posições que são prescritas, do ‘ethos comportamental’ na qual a liturgia nos introduz. Assim, é a “ritologia”, e não o ‘ritualismo rubricista’ que aparece como a disciplina mais significativa, pois permite analisar o significado dos ritos na sociedade em que vive o homem em cada tempo, as suas condições de realização e os seus efeitos específicos.
A teologia pode sim referir-se à liturgia como a um objeto de conhecimento. Ela pode, assim, considerá-la como uma fonte de compreensão, e estar atenta a dimensão teológica das celebrações, nos seus ritos como nos seus textos. Neste horizonte de inteligibilidade se situa o adágio lex orandi, lex credendi, segundo o qual a lei da oração determina a lei do crer ou acreditar. Deste modo se abre a abordagem mais recente, e menos comum: ela consiste em considerar as realizações litúrgicas como uma fonte, como um ‘lugar teológico’, mais do considerar como expressões segundo as correntes da dogmática.
É com esta convicção que o nosso autor, ele mesmo o diz, acredita nesta disciplina, procurando com uma suficiente consciência das fontes que oferece a liturgia. Na sua “Inteligência da liturgia” o autor plasma a sua descoberta, estudo profundo e prática da liturgia. O nosso conhecimento do autor como nosso professor e diretor de tese de doutoramento, revela, também aqui, o seu método constante que inicia por questionar a legitimidade de qualquer propósito, como neste caso a de escrever um livro, quase à maneira do seu antecessor como diretor do ISL, o nosso amigo Padre Gy e os seus célebres “abrir parêntesis” constantemente sem fechar nenhum! Processo interpelativo constante a um ‘agir’ na ‘inteligência’ do interlocutor.
Nada de incompreensível na liturgia! Assim o afirma o Autor desde o início. Mas a liturgia não é primeiramente um objeto a compreender intelectualmente, como peça a desmontar, mas ela é sim “uma fonte que dá sentido”. Primeira atitude será a de deixá-la falar e ouvi-la “com simpatia”.
De que modo, tantas vezes com vontade desenfreada de fazer balanço, se faz a análise da reforma litúrgica? Há que inteligentemente ver o processo que não terminou, mas está ainda em ato. A liturgia é dirigida ao homem de hoje mas não se pode esquecer que é também oração dirigida a Deus. A pressa em levantar a bandeira da “incompreensibilidade” faz ver lacunas que são fruto duma visão parcialista e demasiado ‘estreita’. Há que olhar para as dificuldades, mas num contexto mais vasto da vida do homem de hoje: quantos conflitos de toda a ordem, novas questões, o papel atual da religião no mundo, os ‘mitos’ modernos da técnica e da ciência…
Paul De Clerck na sua “Inteligência da liturgia” propõe um percurso de fundo onde a ‘compreensão da liturgia’ passa pela perceção do corpo e dos sentidos (dimensão antropológica) onde o ‘ato litúrgico’ manifesta a sua dimensão teológica, na realização propriamente eclesial da liturgia inserida numa cultura dada que quer celebrar o ‘hoje de Deus’ para os homens. Não esquecendo que a liturgia ‘atua’ num lugar próprio com exigências específicas para que seja possível a experiência de Deus para uma verdadeira vida espiritual. Cada um destes aspetos forma um capítulo do livro.
Parece-nos oportuno referir as palavras de Paul Valadier no seu livro “A beleza dá sinal” (Arte. Moral. Religião) quando afirma que o propósito da arte, sobretudo contemporânea, não é a de produzir um quadro das coisas feitas ou da estupidez que encontramos em obras bem longe de qualquer lugar de inspiração ou de criatividade. Querer quebrar tabus com pinceladas de novidade sem consideração de regras ou da história é criar novos tabus que não se ousa meter em causa sob pena de ofender a liberdade de expressão dos artistas. A criatividade não se impõe a todos e nem todos a podem perceber imediatamente. O tempo seleciona, exclui ou consagra!
Esta “Inteligência da liturgia”, publicada originalmente em 1995, e agora em português, vem colmatar uma lacuna importante para uma ‘abordagem ética da liturgia’ em momentos de dispersão. O trabalho de dez anos na Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, permitiram-nos ver como facilmente se desenterram ‘cadáveres’ históricos (livros, ritos, festas…) sem uma “inteligência” crítica da liturgia para que uma verdadeira “hermenêutica da continuidade”, exatamente entendida como a propõe Joseph Ratzinger, leve por diante a reforma indicada pelo Concílio Vaticano II.
Pe. José Ribeiro Gomes